Tucídides: História da Guerra do Peloponeso

2013

ISBN 978-972-31-1358-7

- Annotations   ·   No Other Contributors   ·   CC BY-NC 4.0 License information Pedro Rosa

LIVRO I Introdução e arqueologia da Hélade I. Tucídides, cidadão ateniense, descreveu a guerra entre Peloponésios e Atenienses e a forma como lutaram uns contra os outros. Começou logo a seguir ao rebentar da guerra, na convicção de que seria grande e mais digna de relato do que as sucedidas anteriormente, dando-se conta de que ambas as potências se encontravam, em todos os aspectos, no auge da preparação para essa finalidade e porque via que o resto do mundo helénico se ia inclinar para uma das partes, uns de forma imediata, outros depois de ponderarem. Foi este o maior movimento de sempre, que galvanizou os Helenos e determinada parte dos Bárbaros e, por assim dizer, parte significativa da Humanidade. Era impossível, devido à extensão temporal, distinguir com clareza os acontecimentos que se deram antes ou os que ainda foram mais antigos. Quanto às provas que, investigadas por mim com a maior profundidade, julgo serem de confiar, penso que não eram importantes nem quanto às guerras, nem quanto a outros factos que se deram. II. É evidente que o território a que hoje se chama Hélade não foi em tempos antigos uniformemente habitado, uma vez que então se sucediam migrações e que esses povos também abandonavam rapidamente os sítios onde se instalavam, por serem a tal forçados por outros mais numerosos. De facto não havia qualquer troca comercial nem se misturavam sem medo essas gentes entre si, nem por terra nem por mar, limitando-se cada uma a cultivar, no terreno onde estava, o bastante para viver, sem que obtivessem acumulação de riqueza por não plantarem as terras com culturas permanentes, pois não era duvidoso que um invasor as não pudesse ocupar, visto que nessa mesma altura ainda não dispunham de muralhas. Julgando que no dia-a-dia conseguiam obter em toda a parte e sem dificuldade o sustento necessário, mudavam de lugares e, por isso, não eram fortes nem na dimensão das cidades, nem em quaisquer outros recursos. [3] Era sobretudo a parte mais ricas terras que recebia estas migrações de habitantes, como a agora chamada Tessália e a Beócia, muitas partes do Peloponeso, com excepção da Arcádia, e tantas quantas fossem mais férteis no resto do território grego. Devido à melhor qualidade da terra, assim era o poder gerado para as mais fortes, o que ongmava guerras soctats que as arrumavam e ao mesmo tempo as tornavam mais sujeitas aos ataques de tribos vindas de fora. A Ática pelo menos desde há muito tempo foi poupada a lutas internas, devido à pouca profundidade do seu solo e por ter sido sempre habitada pelo mesmo povo. E é um exemplo não desprezível do que digo o facto de ter sido por causa das tais migrações que os outros territórios não se desenvolveram ao mesmo nível. Mastados das outras partes da Hélade pela guerra ou pela agitação social, emigravam para Atenas os mais capazes devido à segurança existente e, desde tempos antigos, obtinham rapidamente estatuto de cidadãos, pelo que tornavam a cidade ainda maior pelo número dos seus habitantes de tal forma que, por fim, já sendo a Ática demasiado pequena, teve de mandar fundar colónias para a Jónia. III. Também para mim está claramente provada a fraqueza dos tempos antigos pelo facto de que antes dos acontecimentos troianos parece que nada foi anteriormente e em conjunto empreendido pela Hélade. Parece-me até que nem este nome se aplicaria à totalidade do seu território, e que antes de Heleno, filho de Deucalião, nem sequer existia essa denominação, uma vez que eram as outras tribos, nomeadamente a Pelásgica, que davam aos lugares os seus próprios nomes; porém, quando Heleno e os seus filhos cresceram em poder na Ftiótida e passaram a ser chamados em auxílio das outras cidades, a pouco e pouco as tribos, por motivo desses serviços, passaram de preferência a chamar-se Helenos ainda que, por muito tempo, não fosse possível que o nome se aplicasse exclusivamente a todos. A melhor testemunha disso é Homero. Tendo aparecido este muito depois do conflito troiano, nem por isso usa, seja em que passo for, essa denominação para todos nem para outros, excepto para os que da Ftiótida acompanhavam Aquiles, os quais foram de facto os primeiros Helenos, muito embora no seu poema utilize denominações como Dánaos, Argivos e Aqueus. Não lhes chamou contudo Bárbaros, pois, como me parece, os Helenos ainda não tinham sido separados dos outros povos, para que, como contraste, fossem denominados por um só nome. Cada um dos que porventura recebeu o nome de Helenos, cidade por cidade, separadamente ou sucessivamente, privando uns com os outros e em conjunto depois, nada empreendeu antes da guerra de Tróia devido à sua fraqueza e falta de contacto e de união entre si. E para essa expedição só se juntaram depois de terem progredido muito mais na experiência marítima. IV. Foi Minos que, antes de todos os que nos são conhecidos pela tradição, montou uma armada. Dominou grande parte do que hoje é chamado Mar Helénico, e assenhoreou-se das ilhas Cíclades, sendo o primeiro colonizador da maior parte delas e, depois de expulsar os Cários, entregou o governo aos filhos. Quanto à pirataria, como é natural, tentou expulsá-la do mar conforme podia, de maneira a que os seus rendimentos passassem mais facilmente para as suas mãos. V. Os Helenos, em antigos tempos, bem como os Bárbaros que no continente viviam junto à costa, e assim também os que dominavam as ilhas, logo que começaram com maior facilidade a navegar em barcos uns contra os outros, passaram a praticar a pirataria sob o comando de chefes não desprovidos de capacidades, na mira de ganhos próprios e de prestarem ajuda aos aliados mais fracos, assaltando cidades desprovidas de muralhas ou que consistiam em aldeias espalhadas, as quais pilhavam, e dessa actividade compunham grande parte do seu modo de viver, visto que esta fonte de rendimento não era objecto de vergonha, mas consigo trazia muito pelo contrário renome glorioso. Ainda o atestam hoje, e até em tempos passados os poetas, alguns povos continentais que consideram uma honra o proceder assim, perguntando aos que apartam à costa se são piratas ou não, como se não estivessem a fazer a pergunta a quem julga o trabalho digno de mérito e que não vai censurar perante os que desejam a informação. Também em terra se assaltam uns aos outros e até nos dias de hoje em muitas partes da Hélade se continua a viver à maneira antiga nas zonas à volta dos Lócrios Ozolas, dos Etólios, dos Acarnanos e em terras do continente. O hábito dos continentais de andarem armados é um resto desse antigo costume de assaltarem. VI. Com efeito toda a Hélade andava armada, porque as povoações não estavam protegidas e a convivência entre as gentes não era sem perigo e o porte de armas era um sistema normal, tal como entre os Bárbaros. O facto de ainda hoje em certas partes da Hélade se manter este costume é a prova de que outrora semelhantes comportamentos se espalhavam por toda a parte. Entre estes povos, foram os Atenienses os primeiros a depor as armas, e uma forma de viver mais à vontade levou-os a mudarem-se para um maior bem-estar. Foi devido a esse bem-estar que só há pouco tempo os mais velhos das classes ricas é que deixaram de vestir túnicas de linho e de pentear em nó os cabelos da cabeça, que fixavam com um broche de cigarras douradas. Daí o ter passado há muito esse mesmo ornamento para os mais velhos dos Jónios, por serem da mesma origem. Contudo um adorno mais modesto segundo esta mesma moda foi adoptado primeiramente pelos Lacedemónios, e evitando os que eram mais ricos que houvesse diferenças para com os outros, limitavam-se sobretudo a formas mais igualitárias. Eram os primeiros a despir-se e à vista de todos untavam-se com óleo, quando praticavam exercícios fisicos. Em tempos já idos, mesmo nos Jogos Olímpicos, usavam tangas à volta das partes vergonhosas os atletas que competiam, e não foi há muitos anos, que deixaram de o fazer. Na verdade, ainda hoje entre os Bárbaros, especialmente entre os Asiáticos, onde se atribuem prémios para a luta e boxe, os que os disputam assim se preparam. Seria possível demonstrar que em muitos outros aspectos o mundo helénico tinha costumes idênticos aos do mundo bárbaro de hoje. VII. Contudo as cidades que foram construídas mais recentemente e, quando a navegação se tornou finalmente menos perigosa, começaram elas a ter mais abundância de riqueza e a ser construídas na própria costa e os istmos a serem rodeados de muralhas com a finalidade de promover o comércio e de protecção dos povos frente aos seus vizinhos. Mas as cidades já antigas, devido à pirataria, que perdurou por muito tempo, eram de preferência construídas longe do mar, fosse nas ilhas ou no continente, pois os piratas não só se atacavam uns aos outros, como também os que viviam na costa, mas que não eram gente do mar, e até aos dias de hoje ainda vivem nas terras do interior. VIII. Não menos piratas eram os ilhéus, tais como os Cários e os Fenícios, que habitavam a maior parte das ilhas. Testemunho é dado por Delos, quando foi purificada pelos Atenienses durante esta guerra e foram abertos os túmulos nos quais jaziam os que tinham morrido na ilha, sendo mais de metade Cários, reconhecidos pela concepção das armas que com eles foram enterradas e que é a mesma das que com eles ainda hoje são sepultadas. Quando se estabeleceu a força naval de Minos, tornou-se mais fácil a navegação entre os diversos povos, pois os bandidos foram por ele expulsos das ilhas, e muitas das suas povoações foram então colonizadas e os habitantes da orla marítima começaram nessa altura a adquirir mais propriedades e a viver em maior segurança, construindo até alguns à sua volta muralhas, uma vez que se tinham tornado mais ricos do que eram. Promovidos pelo lucro os mais fortes, deixaram-se os mais fracos ficar na dependência destes, e os mais capazes e na posse de fortunas levaram a cabo pôr sob o seu domínio as cidades menos poderosas. Foi desta forma que, crescendo cada vez mais, se decidiram a fazer a expedição contra Tróia. IX. Segundo me parece, Agamémnon por ter ultrapassado em poderio os poderosos da sua época, é que conseguiu reunir a sua armada, e não tanto por estarem ligados pelo juramento de Tíndaro os pretendentes de Helena, que tinha sob o seu comando. Também dizem os Peloponésios que receberam as provas mais seguras da tradição dos seus mais antigos predecessores, que Pélops, primeiramente na posse de enormes riquezas que com ele vieram da Ásia para junto de gente pobre, obteve para si o poder, apesar de ser um forasteiro, e deu o seu nome à região ao mesmotempo que dela se assenhoreava e que depois ainda maiores bens foram legados aos seus descendentes. Quando Euristeu foi morto em campanha na Ática às mãos dos Heraclidas, a Atreu que era irmão da mãe de Euristeu, por ter tido a sorte de ter fugido do pai quando do assassínio de Crisipo, tinha-lhe sido confiada por Euristeu a soberania de Micenas devido aos laços de parentesco. Visto que Euristeu não voltou, os Micénios por vontade própria e devido ao medo que tinham dos Heraclidas e porque Atreu parecia corajoso e agradara ao povo, levaram-no a receber o poder sobre eles e sobre aqueles em quem Euristeu tinha mandado, sendo desta forma que a casa de Pélops se tornou mais poderosa do que a de Perseu. [3) Parece-me esta a razão por que Agamémnon entrou nessa altura na posse de tudo isto e por dispor de um poder naval maior que o dos outros se lançou na expedição, impelido não tanto pela generosidade, mas pelo medo. Na realidade é evidente que ele apareceu equipado com o maior número de navios, tendo mais outros ainda para ceder aos Arcádios, como Homero demonstrou, se é que Homero é testemunha suficientemente idónea. Diz ele, quando relata a entrega do ceptro, que "mandava em muitas ilhas e em toda a Argos". Ora Agamémnon, estando no continente, não seria senhor dessas ilhas, à excepção das próximas da costa, que não são muitas, a não ser que tivesse poder naval. É por esta expedição que é necessário avaliar como era a situação antes de ela se realizar. X. E porque Micenas era pequena e também porque qualquer cidade daquele tempo pareceria agora de pouca importância, não ficaria bem utilizar provas imprecisas para tornar pouco digna de crédito a grandeza da expedição tal como os poetas a descrevem e a tradição confirma. Se a cidade dos Lacedemónios tivesse ficado deserta e tudo tivesse sido abandonado à excepção dos templos e das fundações dos outros edifícios, penso que, à medida que o tempo fosse passando, alguma dúvida subsistiria sobre se o poder real de que usufruía corresponderia ao seu renome. E no entanto ocupam dois quintos do Peloponeso e mandam em toda essa região, bem como em muitos aliados de outras zonas. Ao mesmo tempo, visto que nem a cidade é construída com boas estruturas, nem dispõe de templos e de edificios valiosos, mas é habitada em povoações à maneira da antiga Hélade, esse poder poderia parecer inferior. Atenas, por seu lado, se passasse pelo mesmo destino, só pela visão clara da cidade pareceria duas vezes mais poderosa do que é na realidade. Portanto, há que não dar crédito somente às aparências, nem olhar mais para o que se vê das cidades do que para a sua real força, e acreditar que aquela expedição foi a maior das que antes se fizeram, ficando atrás contudo das de hoje em dia, se quisermos confiar na poesia de Homero, o qual por ser poeta é evidente que quis embelezar, embora pareça que mesmo assim a imaginou modesta. Na verdade numa armada de mil e duzentos barcos apresenta as embarcações dos Beócios com cento e vinte tripulantes, cada barco de Filoctetes com cinquenta, indicando, segundo me parece, os barcos maiores e os mais pequenos. Quanto ao calado dos outros barcos não o recorda no Catálogo das Naus. Que todos eram remadores e guerreiros distinguiu-o ele nos barcos de Filoctetes. Com efeito fez archeiros de todos os remadores. Não é provável que houvesse tantos supranumerários na expedição, além dos reis e dos mais poderosos, sobretudo porque iam atravessar o mar com equipamento militar sem terem barcos com cobertas, mas simplesmente equipados conforme o estilo antigo, ou seja, mais como barcos de piratas. Para quem olhar para a média entre embarcações maiores e mais pequenas não parece que na expedição fossem muitos homens, uma vez que eram enviados em comum de toda a Hélade.